sábado, 26 de dezembro de 2009

Diálogo VIII

Sobre panos de fundo, o chefe Quim, o espírito escutista, e algumas sugestões de livros


1

— «Talvez o maior equívoco que um chefe pode cometer», dizia Bravo, procurando encontrar a melhor maneira de o dizer, «seja não compreender muito bem como se sentem seus escuteiros diante de um jogo ou acampamento. O entusiasmo, numa Secção, é essencial; e, numa Unidade de poucos recursos, às vezes é tudo! O chefe deve ser capaz de verificar que pano de fundo é o mais conveniente para motivar seus escuteiros em relação a um jogo, por exemplo.»

— «Já havias falado sobre panos de fundo. Queiras explicar-mo melhor.»

— «Melhor do que explicar, darei alguns exemplos do que fazer e, principalmente, do que não fazer.»

— «Os exemplos do que não fazer costumam ser os melhores...»

— «Quem já leu Escutismo Para Rapazes sabe quem é o Quim Novato que aparece nesse livro. Pois bem! Eu direi que há não só escuteiros como o Quim, mas também chefes. Entretanto, antes de continuar, deixa-me reproduzir algumas palavras sobre o escuteiro Quim quando vai acampar:

»"O Quim, ao chegar ao campo, prevê grandes alegrias;
»"E descobre, enfim, que as tendas são seguras por espias!"

»[BADEN-POWELL DE GILWELL, Lord. In: Escutismo Para Rapazes. Tradução: SANTOS, Dr. José Francisco dos. Portugal, Edições Flor de Lis, 1946. p. 113.]»

Bravo continua:

— «Para ilustrar esse par de versos, há uma caricatura: um escuteiro que tropeça num cabo [espia, segundo o dístico: nota que são 15 sílabas poéticas em cada verso, sendo tónicas a 5ª, a 7ª, a 11ª e, obviamente, a 15ª] e estatela-se com mochila, lampião e toda uma série de pequenas coisas que trazia.»

— «Então, nem todos os chefes são perfeitos? Oh, eu já sabia!»

— «Há chefes que são verdadeiros "pata-tenras".»

— «Mas tu ainda me deves alguns exemplos do que fazer.»

— «Num jogo como os Fugitivos [que aparece na obra citada, à p. 150], o chefe Quim diria: — "Os escuteiros que são do grupo dos seguidores... e os escuteiros que são da equipa dos fugitivos... devem poceder desta ou daquela maneira." Ora! Os escuteiros devem crer, ao menos durante o jogo, que não há escuteiros ali, mas, sim, perseguidores e fugitivos. Recorda que naquela adaptação de "Alarme: Agarra que É Ladrão" [op. cit., p. 69], sobre a qual falámos noutro diálogo, eu disse àquele Moço "Tu és o espião!" em vez de lhe dizer "Tu és o escuteiro que fará o papel de espião neste jogo aqui" ou "O espião serás tu, Fulano: vence teus amiguinhos de Secção e tem cuidado para não amarrotares o uniforme".»

— «Realmente não é a mesma coisa. Mas quanto à história por detrás do jogo: não é isso que chamam de pano de fundo?»

— «Naquela adaptação, em que esse "Agarra que É Ladrão" de B.-P. tornou-se aquele meu "Agarra que É Espião", a história por detrás do jogo foi o cerco de Mafeking. É preciso ter em mente o cerco e entender o que se passava entre os sitiados e os boeres. Caso os jogadores não conheçam a história, ela pode muito bem ser-lhes transmitida num fogo de conselho, por exemplo, ou quando o chefe reúne seus escuteiros ao fim do dia num acampamento. No dia seguinte, basta lembrar-lhes a história e dizer-lhes "Tu és o espião!" ou "Defendam a bandeira no alto do morro!" (então eles entendem porque o chefe havia fincado aquele pedaço de pano lá).»

— «E que mais o chefe Quim faria?»

— «Ainda em relação a panos de fundo, deve-se esquecer palavras como "jogo" e "jogadores" durante um jogo. É como um filme ou uma história literária. Não deves ter em mente o tempo todo que se trata de faz-de-conta. Pelo contrário: quanto mais os escuteiros levarem a sério o pano de fundo, melhor. Uma pequena história e o vocabulário empregados são essenciais. Vê bem: qual a primeira coisa que fazemos quando queremos aplicar um jogo do Kim?»

— «Juntar um monte de quinquilharias, algumas folhas e canetas e...»

— «Não, não! Eu quero dizer antes disso.»

— «Antes do próprio jogo?»

— «Sim. Pensa.»

— «Bem... creio que devamos contar uma pequena história, mas nem sempre é o que acontece. Há até quem ache isso desnecessário.»

— «É uma pena que alguém pense assim. A história por trás do jogo deve ser contada de modo que os escuteiros se interessem pelo que virá a seguir. Ou, melhor ainda, de modo que eles se entusiasmem. Memorizar um monte de quinquilharias seria uma coisa realmente sem graça e, às vezes, de facto o é em algumas Unidades, porque os escuteiros crêem piamente que seja exactamente isso o que estão a fazer. Infelizmente muitos rapazes jogam o Kim sem conhecer a história de Kimball O'Hara. Por outro lado, se antes de começarmos o jogo tivermos o pequeno cuidado de lhes contarmos a história de Kim, isto é, a história que explica as razões de o jogo ser daquele jeito, então os escuteiros, muito provavelmente, não verão à sua frente apenas quinquilharias. Cada escuteiro deve sentir-se o próprio Kimball O'Hara e, por sua vez, o chefe que aplicar esse jogo deve acreditar que é o próprio Lurgan! Um chefe entusiasmado, eu te garanto, vale por dois. Da mesma forma, um escuteiro apático não rende como deveria. O próprio Movimento Escutista tem seu pano de fundo. Lê (ou relê) Escutismo Para Rapazes e vê quantas vezes B.-P. evoca exemplos a fim de incentivar os jovens a serem escuteiros. Logo nas primeiras linhas do livro, ele diz: — "O explorador do exército (o antigo escuta) é, geralmente, como sabeis, um soldado escolhido pela sua capacidade e coragem (...)" e, mais adiante um pouco, no parágrafo seguinte: — "Mas, além de exploradores de guerra, há também explorados pacíficos — gente que em tempos de paz realiza trabalhos que exigem igual coragem e engenho." E, depois de ter falado do cerco de Mafeking, desafiou os leitores: — "Serias tu capaz de fazer outro tanto?" [op. cit., respectivamente pp. 3 e 11]. Ele, em Escutismo Para Rapazes, usa inúmeros panos de fundo. Eu te posso fazer uma lista:

»1) Exploradores do exército;
»2) Kimball O'Hara;
»3) O cerco de Mafeking;
»4) A cavalaria medieval;
»5) O crime de Elsdon;
»6) A polícia rural Sul-Africana; etc.»

Bravo continua:

— «Eu poderia citar outros exemplos de Escutismo Para Rapazes, mas, como creio que o vás ler caso não o tenha feito ainda, deixarei que percebas outros exemplos sozinho, incluindo os mais subtis. Mas, a terminar, permite-me lembrar que, para abrir a Palestra Nº 10 [op. cit., p. 130], ele desenhou um índio que espera pacientemente um pedaço de carne que assa sobre brasas. Isso também é pano de fundo. Nem só de palavras ele é feito. Podemos "inspirar" os rapazes de inúmeras formas.»


2

— «Agora vejo melhor o que são panos de fundo e que devo, além disso, ler Escutismo Para Rapazes. Se desse livro nasceu o Movimento, deve trazer tudo o que devemos saber.»

— «Eis a questão. Não é um livro de regulamentos e regras como o P.O.R. que conhecemos. É mais um livro que sugere e dá exemplos. Se fosse um livro que descrevesse cruamente o que fazer, talvez o Escutismo não existisse. É justamente porque ele entusiasmou os primeiros rapazes a formarem as primeiras Patrulhas que o Escutismo surgiu. Vês como alguns bons exemplos e algumas palavras bem empregadas podem fazer a diferença? Eis aí o que deve fazer um bom pano de fundo.»

— «Podes indicar-me alguns livros? Hoje falaste bastante de Escutismo Para Rapazes.»

— «Temos o P.O.R. para nos dizer exactamente o que fazer, com os seus princípios, organizações e regras; mas o espírito escutista não se dirige à Razão humana. É uma coisa que está no mundo dos sentimentos e não da Lógica. Hoje em dia, muito do que se refere à prática do Escutismo mudou. Por exemplo: já não se exige de um bom escuteiro que ele seja hábil a abater árvores. Um rapaz actualmente pode chegar a Lis de Ouro sem nunca ter levantado um machado contra uma árvore.»

— «"O Escuta protege as plantas e os animais", lembra-te do sexto artigo da Lei.»

— «Já não vamos à mata hoje em dia abater árvores, mas ainda sacrificamos este ou aquele animal que criamos no quintal de casa para nossa alimentação."

- "Não é a mesma coisa.»

— «Hoje em dia realmente não é, mas já houve um tempo em que era. Vê bem. Dizemos que um escuteiro deve ser bom para com os animais e ao mesmo tempo sacrificamos um animal qualquer (uma frango, por exemplo), porque ele será útil para a nossa alimentação. Quando a maior parte da população vivia no campo (no Brasil isso durou até algumas décadas atrás), derrubar uma árvore para pequenos serviços também era uma coisa útil e corriqueira (para cozinhar à lenha aquele frango que matámos, por exemplo). Actualmente não derrubamos árvores com nossas próprias mãos, mas ainda o fazemos de forma indirecta quando consumimos papel ou peças de mobiliário.»

— «Aonde queres chegar?»

— «Quem inventou o sexto artigo da Lei Escutista é a mesma pessoa que, em Escutismo Para Rapazes [op. cit., p. 98], explicava a melhor maneira de se abater uma árvore.»

— «Tens a certeza disso?»

— «Tenho-a. Lê o livro e vê-lo-ás. Mas não há nenhum paradoxo nisso. O que acontece é que os tempos mudam e hoje já não vemos grande necessidade de abater árvores. Fazer isso apenas para realizar uma prova (quando na maioria das vezes já não há necessidade), isso sim seria ir contra o sexto artigo.»

— «Queres dizer que se eu ler Escutismo Para Rapazes poderei aprender como abater árvores? E ainda assim devo ler o livro para ser um bom escuteiro?»

— «Não deves ler o livro para ser hábil em matéria de pôr árvores abaixo, a não ser que queiras problemas com a Guarda Florestal, mas deves ler essa obra de B.-P. de modo que possas (como direi?) captar o que vem a ser o espírito escutista. O que sentiram os jovens de cerca de um século atrás, ainda podemos sentir. Talvez ainda mais, porque vivemos a maioria em zonas urbanas. O Desconhecido é que aguça a imaginação. E aqui volto a dizer: creio que o maior erro que um chefe pode cometer seja não estar em sintonia com sua Secção. Um chefe deve ser capaz de perceber, por exemplo, como sua Unidade se sentiu diante de determinado jogo ou actividade. Enfim, deve notar quando se riem mais alto, quando levantam a voz e por quanto tempo isso se prolonga em seus semblantes e em suas memórias. Será muito útil para o chefe saber perscrutar a mente de seus escuteiros e povoar-lhes a imaginação com as melhores imagens possíveis.»

— «Concordo plenamente. Mas eu tinha pedido que me indicasses alguns livros e, por enquanto, em minha lista há apenas dois.»

— «Lê Scouting Games, da maneira que lhe for possível, em inglês ou em português; mas não sei se há uma tradução. Se não souberes inglês, talvez a obra já tenha sido traduzida para outra língua de seu conhecimento ou, simplesmente, pede uma tradução a alguém, mesmo que tenhas de pagar por ela. (Não pagarias por um bom livro? Porque então não pagarias por uma boa tradução?).* Lê o Guia do Chefe Escoteiro,** também escrito por B.-P. Queiras ler ainda Opiniões de Delta,** do chefe Rex Hazlewood, ou The Opinions of Delta, que é o título original em inglês, e também The Further Opinions of Delta, do mesmo autor. Esta última obra não sei como se chama em português, pois não me lembro de nenhuma tradução para nossa língua, mas, em português, seria algo como As Novas Opiniões de Delta. Lê e consulta regularmente o P.O.R. e acompanha qualquer mudança que lhe ocorra. Tem sempre à mão o livro de Competencias & Especialidades e as Resoluções da Diretoria Nacional. (Não te esqueças de que estaremos subordinados a um órgão maior, que é a U.E.B.). Vê O Sistema de Patrulhas,** do cap. Roland E. Phillipps, morto na I Guerra Mundial, e A Corte de Honra,** de John Thurman. Certamente há outros livros interessantes que eu poderia citar, e mesmo outros tão ou mais interessantes que eu sequer conheço! Mas, para começar, esses aí hão-de bastar. Talvez não os possas achar todos facilmente, pois a maioria deles são obras antigas e só posso confirmar-te edições de décadas atrás. Mas certamente podes imprimir da Internet as obras que já tiverem passado a domínio público, agindo sempre conforme a Lei, é claro. Opiniões de Delta, devo dizer, trata-se de uma série de pequenos livros. E, antes que digas que algumas dessas obras são muito antigas, direi que poderás encontrar nelas o verdadeiro espírito escutista — como se ainda usássemos [no Brasil] camisas de mangas compridas para compormos o uniforme! E, se realmente acamparemos, Normas de Acampamentos não seria má leitura. Tem sempre alguns bons livros de jogos contigo também: usá-los-ás até não poderes mais!»

— «Não é uma lista grande, mas já vi que um agrupamento deve ter sua própria biblioteca, por mais modesta que seja.»

— «Uma meia dúzia de bons livros já vale por um mundo de bons conselhos. Sempre será um óptimo investimento para o agrupamento, principalmente se lhe for possível conservar aquelas obras de pequena tiragem que, com o tempo, se tornam às vezes verdadeiras raridades.»
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(*) No caso das obras de B.-P., elas passam a domínio público a 8 de janeiro de 2011, segundo a Lei de Direitos de Autor válida para Inglaterra, Brasil, E.U.A., Canadá e outros países que adoptam o prazo de 70 anos, contados a partir da morte do autor. (N.A.).

(**) O «Guia do Chefe Escoteiro» [«Aids to Scoutmastership»], «Opiniões de Delta», «O Sistema de Patrulhas» [«The Patrol System»] e «A Corte de Honra» [«The Court of Honor»] são os títulos no Brasil. Como se chamam essas traduções em Portugal? Elas existem em Português Europeu? «Corte de Honra», pelos escuteiros do CNE e da AEP, é chamada de «Conselho de Guias de Patrulha». (N.T.)

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